A
Disciplina do Jejum
“Algumas pessoas têm exaltado o jejum religioso
elevando-o além das Escrituras e da razão; e outras o têm menosprezado por
completo.” - João Wesley
Em
uma cultura onde a paisagem está pontilhada de restaurantes de todos os tipos, o
jejum parece fora de lugar, fora de passo com os tempos. Com efeito, o jejum
tem estado em geral descrédito, tanto dentro como fora da igreja, por muitos
anos. Por exemplo, em minha pesquisa não consegui encontrar um único livro
publicado sobre o jejum, de 1861 a 1954, um período de quase cem anos.
Mais
recentemente desenvolveu-se um renovado interesse pelo jejum, muito embora ele
seja freqüentemente dogmático e carente de equilíbrio bíblico.
Que
é que explicaria este quase total menosprezo por um assunto mencionado com
tanta freqüência nas Escrituras e tão ardorosamente praticado pelos cristãos
através dos séculos? Duas coisas. Em primeiro lugar, o jejum, como resultado
das excessivas práticas ascéticas da Idade Média, adquiriu uma péssima
reputação.
Daí
que o jejum foi submetido aos mais rígidos regulamentos e praticado com extrema
automortificação e flagelação. A cultura moderna reagiu fortemente contra esses
excessos e tendeu a confundir jejum com mortificação.
O
segundo motivo por que o jejum passou por tempos difíceis no século passado é a
questão da propaganda. A publicidade com a qual somos alimentados hoje
convenceu-nos de que se não tomarmos três boas refeições por dia, entremeadas
com diversas refeições ligeiras, corremos o risco de morrer de fome. Isto,
aliado à crença popular de que é uma virtude positiva satisfazer a todo apetite
humano, fez que o jejum parecesse obsoleto. Quem quer que seriamente tente
jejuar é bombardeado com objeções. “Entendo que o jejum é prejudicial à saúde.”
“Ele
minará as suas forças e assim você não poderá trabalhar.” “Não destruirá ele o
tecido saudável do corpo?” Tudo isto, naturalmente, é rematada tolice baseada
no preconceito. Embora o corpo humano possa sobreviver apenas durante breve
tempo sem ar ou sem água, ele pode passar muitos dias - em geral, cerca de
quarenta - antes que comece a inanição. Sem que seja preciso concordar com as
infladas alegações de alguns grupos, não é exagero dizer que, quando feito
corretamente, o jejum pode ter efeitos físicos benéficos.
A
Bíblia tem tanto que dizer a respeito do jejum, que faríamos bem em examinar
uma vez mais esta antiga Disciplina. O rol dos personagens bíblicos que
jejuavam torna-se um “Quem é quem” das Escrituras: Moisés, o legislador; Davi,
o rei; Elias, o profeta; Ester, a rainha; Daniel, o vidente; Ana, a profetisa;
Paulo, o apóstolo; Jesus Cristo, o Filho encarnado. Muitos dos grandes cristãos
através da história da igreja jejuaram e deram seu testemunho sobre o valor do
jejum; entre eles estavam Martinho Lutero, João Calvino, John Knox, João
Wesley, Jonathan Edwards, David Brainerd, Charles Finney e o Pastor Hsi, da
China.
O
jejum, está claro, não é uma Disciplina exclusivamente cristã; todas as grandes
religiões do mundo reconhecem seu mérito. Zoroastro praticava o jejum, como o
fizeram Confúcio e os iogues da Índia. Platão, Sócrates e Aristóteles jejuavam.
Mesmo Hipócrates, pai da medicina moderna, acreditava no jejum. Ora bem, o fato
de que todos esses indivíduos, na Bíblia e fora dela, tinham o jejum em alta conta
não o torna certo ou mesmo desejável; isto porém, deveria levar-nos a fazer uma
pausa e nos dispormos a reavaliar as suposições populares de nosso tempo
concernentes à Disciplina do jejum.
O Jejum na Bíblia
Nas
Escrituras o jejum refere-se à abstenção de alimento para finalidades
espirituais. Ele se distingue da greve de fome, cujo propósito é adquirir poder
político ou atrair a atenção para uma boa causa. Distingue-se, também, da dieta
de saúde, que acentua a abstinência de alimento, mas para propósitos físicos e
não espirituais. Devido à secularização da sociedade moderna, o “jejum” (se de
algum modo praticado) é motivado ou por vaidade ou pelo desejo de poder. Isto
não quer dizer que essas formas de “jejum” sejam necessariamente erradas, mas
que seu objetivo difere do jejum descrito nas Escrituras. O jejum bíblico
sempre se concentra em finalidades espirituais.
Na
Bíblia, os meios normais de jejuar envolviam abstinência de qualquer alimento,
sólido ou líquido, excetuando-se a água. No jejum de quarenta dias de Jesus,
diz o evangelista que ele “nada comeu” e ao fim desses quarenta dias “teve
fome”, e Satanás o tentou a comer, indicando que a abstenção era de alimento e
não de água (Lucas 4.2ss). De uma perspectiva física, isto era o que geralmente
estava envolvido num jejum.
Às
vezes se descreve o que poderia ser considerado jejum parcial; isto é, há
restrição e dieta mas não abstenção total. Embora pareça que o jejum normal
fosse prática costumeira do profeta Daniel, houve uma ocasião em que, durante
três semanas, ele não comeu “manjar desejável, nem carne nem vinho entraram na
minha boca, nem me untei com óleo algum” (Daniel 10.3). Não somos informados do
motivo para este afastamento de sua prática normal de jejuar; talvez seus
deveres governamentais o obstassem.
Há,
também, diversos exemplos bíblicos do que se tem chamado acertadamente “jejum
absoluto”, ou abstenção tanto de alimento como de água. Parece ser uma medida
desesperada para atender a uma emergência extrema. Após saber que a execução
aguardava a ela e ao seu povo, Ester instruiu a Mordecai: “Vai, ajunta a todos
os judeus... e jejuai por mim, e não comais nem bebais por três dias, nem de
noite nem de dia; eu e as minhas servas também jejuaremos” (Ester 4.16).
Paulo
fez um jejum absoluto de três dias após seu encontro com o Cristo vivo (Atos
9.9). Considerando-se que o corpo humano não pode passar sem água muito mais do
que três dias, tanto Moisés como Elias empenharam-se no que deve considerar-se
jejuns absolutos sobrenaturais de quarenta dias (Deuteronômio 9.9; 1 Reis
19.8). É preciso sublinhar que o jejum absoluto é a exceção e nunca deveria ser
praticado, a menos que a pessoa tenha uma ordem muita clara de Deus, e por não
mais do que três dias.
Na
maioria dos casos, o jejum é um assunto privado entre o indivíduo e Deus.
Há,
contudo, momentos ocasionais de jejuns de um grupo ou públicos. O único jejum
público anual exigido pela lei mosaica era realizado no dia da expiação
(Levítico 23.27). Era o dia do calendário judaico em que o povo tinha o dever
de estar triste e aflito como expiação por seus pecados. (Aos poucos foram-se
adicionando outros dias de jejum, até que hoje há mais de vinte!) Os jejuns
eram convocados, também, em tempos de emergência de grupo ou nacional: “Tocai a
trombeta em Sião, promulgai um santo jejum, proclamai uma assembléia solene”
(Joel 2.15). Quando o reino de Judá foi invadido, o rei Josafá convocou a nação
para jejuar (2 Crônicas 20.1-4). Em resposta à pregação de Jonas, toda a cidade
de Nínive jejuou, inclusive os animais - involuntariamente, sem dúvida. Antes
do retorno a Jerusalém, Esdras fez os exilados jejuar e orar por segurança na
estrada infestada de salteadores (Esdras 8.21-23).
O
jejum em grupo pode ser uma coisa maravilhosa e poderosa, contanto que haja um
povo preparado e unânime nessas questões. Igrejas ou outros grupos que
enfrentam sérios problemas poderiam ser substancialmente beneficiados mediante
oração e jejum de grupo unificado. Quando um número suficiente de pessoas
entende corretamente do que se trata, as convocações nacionais à oração e jejum
podem, também, ter resultados benéficos. Em 1756 o rei da Inglaterra convocou
um dia de solene oração e jejum por causa de uma ameaça de invasão por parte
dos franceses. João Wesley registrou este fato em seu Diário, no dia 6 de
fevereiro:
“O dia de jejum foi um dia glorioso, tal como Londres
raramente tem visto desde a Restauração. Cada igreja da cidade estava mais do
que lotada, e uma solene gravidade estampava-se em cada rosto. Certamente Deus
ouve a oração, e haverá um alongamento de nossa tranqüilidade.”
Em
uma nota ao pé da página ele escreveu: “A humildade transformou-se em regozijo
nacional porque a ameaça de invasão dos franceses foi impedida.”
Através
da história também se desenvolveu o que poderia chamar-se de jejuns regulares.
Na época de Zacarias foram criados quatro jejuns regulares (Zacarias 8.19). A
jactância do fariseu da parábola de Jesus evidentemente descrevia uma prática
daquele tempo: “jejuo duas vezes por semana” (Lucas 18.12). O Didaquê insistia
em dois jejuns semanais, nas quartas e nas sextas-feiras. O jejum regular
tornou-se obrigatório no Segundo Concílio de Orleans, no sexto século.
João
Wesley procurou reviver o ensino do Didaquê e insistiu com os primitivos
metodistas a que jejuassem nas quartas e nas sextas-feiras. Com efeito, ele
tinha um sentimento tão forte quanto a este assunto, que se recusava a ordenar
para o ministério metodista, quem não jejuasse nesses dias.
O
jejum regular ou semanal teve efeito tão profundo na vida de alguns que eles
andavam à procura de um mandamento bíblico sobre o assunto, de sorte que
pudessem impô-lo a todos os cristãos. A busca foi em vão. Simplesmente não
existem leis bíblicas que ordenem o jejum regular. Contudo, nossa liberdade no
evangelho não significa licença, mas oportunidade. Visto que não há leis que
nos obriguem, somos livres para jejuar em qualquer dia
Há,
hoje, uma “disciplina” que tem adquirido certa popularidade, semelhante, mas
não idêntica, ao jejum. Chama-se “vigílias”, proveniente do uso que Paulo faz
do termo em conexão com seus sofrimentos por Cristo (2 Coríntios 6.5; 11.27).
Refere-se à abstenção de dormir a fim de atender à oração ou outros deveres
espirituais. Não há indicação de que isso tenha qualquer ligação central com o
jejum; doutra forma, estaríamos limitados a jejuns muito breves!
Embora as “vigílias” possam ter
valor, e Deus às vezes nos chama a passar sem dormir por necessidades
específicas, devemos cuidar para que não elevemos à categoria de obrigações
principais coisas que têm apenas levíssimo precedente bíblico. Deveríamos ter
sempre diante de nós a advertência de Paulo, porque, em qualquer discussão de
Disciplinas, descobriríamos muitas coisas que “... com efeito, têm aparência de
sabedoria, como culto de si mesmo, e falsa humildade, e rigor ascético;
todavia, não têm valor algum contra a sensualidade” (Colossenses 2.23).
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